
Bolsa Família e iniciativas de ingresso e permanência em universidades aumentam as chances de sucesso no ensino superior, avalia tese
Aos 18 anos, Camila (nome fictício) conquistou uma vaga em uma universidade pública. Beneficiária do Programa Bolsa Família (PBF), a estudante havia sido incentivada pela mãe e pelos professores da educação básica a ingressar no curso de ciências sociais. A jovem de cor parda, oriunda de uma família de baixa renda, dedicou-se aos estudos e se valeu de políticas de ação afirmativa para realizar esse sonho. Como universitária, recorreu aos benefícios das políticas de permanência, fez iniciação científica, participou de organizações estudantis e conciliou os estudos com o trabalho para, além de se manter na universidade, continuar contribuindo financeiramente com seu grupo familiar e, finalmente, tornar-se a primeira integrante da família a concluir o ensino superior. Hoje no doutorado, Camila faz parte de um grupo de beneficiários do PBF com ensino superior completo, grupo esse que cresceu 104% entre 2016 e 2022, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Assim como milhares de outros brasileiros, a doutoranda serve de exemplo da importância da interconexão entre as políticas públicas de transferência de renda e o acesso e a permanência estudantil no caso do ensino superior. A economista Bruna Wargas realizou uma pesquisa de doutorado com foco na trajetória de egressos da graduação de uma universidade pública beneficiários do PBF. Seu estudo abarcou o percurso desses estudantes desde a graduação até o ingresso no mercado de trabalho – um público pouco estudado e de difícil acesso para pesquisa – e analisou o papel e os efeitos da articulação de três políticas: a de transferência de renda, a de inclusão no ensino superior e a de permanência universitária.
“A pesquisa evidencia que a articulação das condicionalidades educacionais do Bolsa Família com as políticas de acesso e permanência no ensino superior contribui para prolongar a trajetória educacional de estudantes de grupos socialmente vulneráveis”, afirma a economista, que defendeu sua tese de doutorado na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, com o título “Acesso e permanência no ensino superior: trajetórias de ex-beneficiários do PBF egressos de uma universidade pública”, sob orientação da professora Helena Altmann e coorientação do professor André Pires.
Relato pessoal
“Sem o Bolsa Família, eu não teria tido condições de me dedicar ao ensino básico. Sem as bolsas de auxílio estudantil, eu não teria conseguido concluir a graduação. Sem as bolsas de fomento à pesquisa científica, eu não teria tido condições de ter feito o mestrado e de estar fazendo o doutorado. Para pessoas de baixa renda que almejam a formação acadêmica, esses auxílios são essenciais e precisam ser expandidos”, declarou Camila no questionário de pesquisa usado por Wargas. “Apesar das bolsas, o custo de vida [no bairro da universidade que cursou] é alto. E eu tinha que mandar dinheiro para minha família.”
A pesquisadora utilizou o formulário com um grupo de 286 estudantes egressos de uma instituição pública e que faziam parte de um banco de dados de beneficiários do PBF – todos ingressantes a partir de 2008 e concluintes até 2024. O questionário continha perguntas objetivas e perguntas abertas. Nestas os estudantes puderam expor sua trajetória, as dificuldades encontradas e sua opinião em relação às políticas públicas. Desses, 36 responderam ao questionário. E, no caso desses 36, 47% eram os primeiros integrantes de sua família a ingressar no ensino superior.

“O ponto principal é compreender que esses egressos provavelmente não teriam chegado ao ensino superior sem o suporte das políticas públicas de que foram beneficiários”, disse Wargas. A pesquisa mostra, segundo a economista, como essa conjunção de mecanismos de apoio, da educação básica à universidade, contribuiu para viabilizar trajetórias educacionais longevas com impactos diretos na inserção profissional e na mobilidade social.
Os resultados do estudo vão ao encontro do levantamento do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), também realizado com dados da Pnad-C, que revela o salto numérico de universitários beneficiários do PBF entre 2016 e 2022, de 84 mil pessoas (0,9% do total de beneficiários do PBF de 18 a 65 anos) para 256 mil (4,7%). Um relatório mais recente do Pnad-C, publicado em junho de 2025, mostra que sete entre dez universitários no Brasil cursaram o ensino médio em escolas públicas.
Mudança de perfil
“Há uma mudança no perfil dos estudantes do ensino superior no país com a implementação das políticas de inclusão a partir dos anos 2000, como as cotas raciais e sociais, que possibilitaram o acesso de uma parcela da sociedade brasileira antes impossibilitada de alcançar o ensino superior”, afirmou Wargas, que atualmente trabalha na Diretoria Executiva de Apoio e Permanência Estudantil (Deape) da Unicamp, antes chamada Serviço de Apoio ao Estudante (SAE).
Para a economista, a conjunção das políticas mostra um caminho a ser seguido para que se reduza a desigualdade presente na sociedade brasileira. “Esse é o grande ponto”, destaca a economista. As políticas de inclusão no ensino superior – como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni) – alteraram o ingresso nesse nível educacional, tanto no setor público quanto no privado. “Eu mesma fui beneficiada por uma dessas políticas em 2005. Ingressei na graduação em uma universidade privada pelo Prouni.”
Mobilidade social
A pesquisa chama a atenção ainda para a importância da continuidade e do aprimoramento dessas políticas, e isso levando em conta não apenas o aspecto da formação, mas também o da mobilidade social e o da inserção dos jovens no mercado de trabalho. “Analisamos as trajetórias do grupo pesquisado da educação básica até a inserção profissional. Cabe destacar um aspecto importante de casos que alcançaram a pós-graduação”, disse Wargas. Uma das perguntas feitas pelo questionário tratava de saber como a pessoa se via socioeconomicamente durante a graduação e como se via no momento da resposta. A maioria relatou uma melhora da condição social e sua inserção no mercado de trabalho.
“A pesquisa mostra o sucesso de políticas públicas continuadas de incentivo à educação e de transferência de renda”, afirma a orientadora, coordenadora do SAE entre 2017 e 2022. “Os mecanismos de apoio financeiro ao ensino superior, para graduação, mestrado e doutorado, sempre existiram. Só não estavam atrelados à questão da renda. Bolsas como a de iniciação científica sempre significaram incentivos para a formação de jovens que estavam dentro da universidade. A crítica [aos mecanismos de apoio financeiro] aparece quando esses benefícios atrelados à escolaridade são alocados para uma população de menor renda. Por trás desse discurso moral, na verdade, está a tentativa de coibir o acesso dessa população a benefícios educacionais de que uma elite já desfruta há muito tempo”, disse Altmann. “A educação é um direito que precisa ser garantido a todos.” E, a fim de que esse direito se materialize, um segmento da população precisa de apoio financeiro para concluir a educação básica e o ensino superior, completou.
Criado em 2003, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PBF se destaca pela abrangência social e pela efetividade quanto à redução da insegurança alimentar da população em situação de pobreza e de extrema pobreza. E o benefício, além disso, está condicionado à necessidade de as crianças em idade escolar frequentarem as aulas.
Esta matéria foi escrita e publicada pelo Jornal da Unicamp. Acesse o conteúdo original no link: https://jornal.unicamp.br/edicao/728/articulacao-de-politicas-publicas-amplia-escolaridade-de-estudantes-vulneraveis/